O período de ditadura militar, vivido no
Brasil durante boa parte do século XX, continua sendo tabu e dificilmente é
levado como temática aos palcos dos teatros, assim como às telas dos cinemas brasileiros.
De maneira semelhante também observamos a discreta produção literária que
consegue liberdade, ainda nos dias de hoje, para desvelar os horrores a que a
comunidade civil foi sujeitada durante a dominação militar em nosso país.
A importância dos debates sobre essa parte
da nossa história, assim como a relevância desse contexto trazido aos nossos
palcos é inquestionável. Entretanto, não é porque se trata de um assunto com
fortes implicações históricas que toda abordagem consiga tocar o espectador
contemporâneo. Apesar do texto Murro em
Ponta de Faca, de Augusto Boal, ser datado, o seu conteúdo e a força da sua
mensagem, assim como a dor dos sentimentos de quem é obrigado a se exilar de
sua pátria, não perderiam o caráter de empatia com os espectadores, se
recebesse uma montagem versátil aos espaços cênicos e mais comprometida com as
estéticas teatrais, do que com os clichês televisivos.
Iniciar qualquer crítica a um texto de
Augusto Boal não é uma tarefa fácil, dado o valor histórico, teórico e literário
desse artista que propôs uma maneira diferenciada de utilizarmos o teatro como
adjuvante à compreensão dos papeis sociais e políticos dos indivíduos muitas
vezes apartados dos seus direitos em sociedade. Alguns o tomam por Deus, outros o encaram como um ente
intocável e jamais passível de críticas, sejam elas quais forem, antes mesmo de
serem geradas. Entretanto, para o início de quaisquer abordagens, devemos
sempre compreender que as propostas teatrais de quaisquer grandes nomes da
nossa arte, recebem uma forte datação dos seus contextos sócio, histórico,
filosófico, político, cultural, econômico e geográfico onde estão inseridos.
Isso, de maneira alguma, invalida as contribuições teórico-reflexivas de
qualquer um dos “grandes mestres”. Todavia, não podemos incorrer na leviandade
e limitação de enclausurarmos as propostas destes grandes pensadores em
normativas e regras que devam ser utilizadas e reproduzidas tal e qual os seus
criadores o fizeram no período histórico em que estavam vivendo suas inovações
artísticas.
O valor e a qualidade das contribuições dos
“grandes mestres”, às vezes, causam um certo temor em algumas pessoas mais
despreparadas e desprovidas de repertório argumentativo para poderem questionar
e desgostar da maneira como algumas obras são adaptadas e levadas aos palcos
contemporâneos. Talvez, esse seja um dos motivos que os levem a aplaudirem em
pé a qualquer coisa que assistem e saírem dizendo que realmente gostaram do que
viram. Muitas vezes é mais fácil dizer que um espetáculo estava bem montado, do
que saber argumentar sobre os defeitos e fragilidades de tal montagem.
Toda essa introdução foi feita para que eu
inicie a falar sobre a peça Murro em
Ponta de Faca, de Augusto Boal, apresentada em 01 de novembro de 2013, no
Theatro Guarany, em Pelotas. O espetáculo com direção de Paulo José,
assistência de direção, de Roberto Souza, contava com o elenco formado por
Gabriel Gorosito, Laura Haddad, Nena Inoue, Abilio Ramos, Sidy Correa, Erica
Migon e Raquel Rizzo.
A peça conta a história de 3 casais
brasileiros durante o período de ditadura militar no Brasil. A narrativa se
desenrola, mostrando como pano de fundo inclusive os conflitos políticos dos
países por onde aqueles casais são obrigados a fugir. O contexto histórico
deste período no Chile, Argentina e França, por exemplo, também ajudam a tecer
o universo dessas personagens. A dramaturgia de Augusto Boal é muito bem
composta. O autor sabe como destacar pequenos momentos onde expõe os
sentimentos e conflitos de quem é obrigado a fugir do seu país, apenas por
discordar das políticas que estão sendo adotadas naquele período, ou neste
caso, sendo outorgadas à população. Além disso, Boal também intercala muito bem
os momentos mais dramáticos, com conflitos sobre relações entre casais e algumas
situações cômicas que o ser humano jamais abandona, mesmo em momentos em que
vivencia o horror.
Apesar da datação histórica, o texto
permanece atual no que se refere aos conflitos dos seres humanos, as buscas por
identidade, liberdade e felicidade. Porém, os resultados positivos desse texto
apenas podem ser percebidos dentro de sua completude, quando recebem uma
montagem teatral a sua altura. O que não foi o caso.
A direção de Paulo José não é ruim. O
diretor sabe dispor bem os elementos e as marcações cênicas, explorando muito
bem todo o espaço do palco. Porém, devido às marcações de cena, acredito que
esse espetáculo tenha sido concebido para teatros pequenos, ou espaços cênicos
menores, onde o público possa ficar disposto ao redor dos atores. O direcionamento
dos diálogos e das marcações para sentidos que ignoravam a frontalidade da
plateia não transpareciam uma opção estética, pareciam mais um equívoco na
adaptação dessa apresentação para um teatro com as dimensões e características
do Guarany.
Falando no teatro, ao ver as torres de
iluminação em estrutura de torres em cubo em cima do palco, limitando as
possibilidades de iluminação, refleti sobre a necessidade de que os
proprietários dessa casa de espetáculos façam uma campanha para angariarem fundos
para a construção de um urdimento com qualidade digna à apresentação de
quaisquer espetáculos em nossa cidade. No entanto, isso não foi motivo para a
iluminação concebida por Beto Bruel e
operação de Victor Sabbag comprometer o espetáculo. O iluminador soube retirar
os melhores resultados possíveis dentro da estrutura de que dispunha. Porém,
acredito que, com um urdimento adequado, a iluminação poderia dispor de maiores
possibilidades.
Os figurinos concebidos por Rô Nascimento,
com assistência de Sabrina Magalhães, compunham uma identidade visual adequada
ao período histórico por onde a história da peça transitava, conseguindo
imprimir as características de cada personagem, valorizando-as e possibilitando
a composição do todo na identidade de figurinos. Os elementos de cena
concebidos por Ruy Almeida são muito funcionais e ajudam a construir os
diferentes desenhos de cena, agregando características de versatilidade e
funcionalidade ao cenário.
As reações da plateia me chamaram a
atenção, pois ficava evidente que o público presente estava disposto ao riso e
desejando o riso. Porém, esse não era o contexto do espetáculo, nem tampouco se
tratava de uma comédia. Mas, os momentos em que a peça retratava situações de
diferenças comportamentais entre homens e mulheres, conflitos entre casais e
situações de humor, me pareciam ser os instantes em que os espectadores se
sentiam mais próximos da história. Esse fato me levou a refletir sobre uma
questão muito importante no teatro e que o egoísmo de alguns teóricos costumam
defender como fator de pouca importância: o respeito ao público e ao caráter de
entretenimento que o teatro também tem.
Já há algumas décadas, observamos que o
público brasileiro tem deixado de frequentar as salas de espetáculos, da mesma
maneira que observamos uma forte corrente de teorias acadêmicas ditando o que
os artistas devem conceber como propostas estéticas para o teatro. O valor das
reflexões teóricas sobre a arte teatral é irrevogável. No entanto, essa
peculiaridade se restringe apenas ao campo teórico daqueles que se dispõe a
esse estudo. Não podemos obrigar os espectadores a disporem dos mesmos
referenciais teóricos que os bancos acadêmicos sentam suas discussões. O
público quer o teatro, em sua essência e, como tal, seja ele no estilo,
estética ou proposta que for, uma arte que TAMBÉM permita o entretenimento de
todos e não apenas de um pequeno grupo de arrogantes intelectualóides que
afastam cada vez mais os espectadores das plateias dos teatros, ao imporem seus
experimentalismos teóricos, como a única forma validade de produção teatral.
Com isso, o público ao se sentir desprovido de repertório teórico para tais
eventos – até mesmo porque não tem necessidade de buscar tais embasamentos, já
que não tem obrigação de ser um pesquisador de tais teorias – acaba por se
afastar das casas de espetáculos e não mais a se identificar com uma das
expressões artísticas mais antigas da humanidade: o teatro.
Enquanto eu via a vontade do público em se
entregar ao riso e do quanto as discussões sobre relacionamentos geravam tanta
empatia entre eles, também refleti sobre o fato de que a maneira como a peça
foi concebida, carregava em si fortes referenciais e saídas fáceis tipicamente
características dos clichês televisivos. Este poderia ser o motivo que
aproximasse os espectadores desses raros momentos do espetáculo, pois, como o
público em geral tem abandonado o hábito de frequentar os teatros, a televisão
se tornou o meio pelo qual o público de massa obtém todos os seus referenciais
estéticos. Como, tanto o estilo de
atuação, quanto algumas situações da peça eram extremamente parecidos à
estética clichê das telenovelas e programas de “humor” da TV brasileira,
acredito que o público reconhecia nesses momentos aquilo que está acostumado a
assistir diariamente quando ligam os aparelhos de televisão em suas casas. Após
esses raros momentos, o público parecia que ficava se perguntando sobre o que
estava acontecendo no espetáculo, já que a peça não saía do palco.
A maneira como as marcações cênicas estavam
dispostas acabou tornando o espetáculo hermético, o público queria se sentir
incluído naquilo que estava sendo contado. Isso era perceptível a cada vez que
lhes era permitido esse tipo de relação e, também, quando conseguiam enxergar
as reações dos atores, assim como ouvirem o que estavam dizendo. Só que o
espetáculo parecia tão ensimesmado
que passava a ideia de que o público estava exilado de sua participação na
criação do evento teatral.
O grande problema dos atores ficarem muito
tempo apresentando espetáculos em teatros pequenos ou da concepção ser criada
com o intuito de ocupar espaços mais intimistas, é que, quando a montagem é
levada a um teatro com dimensões operísticas, os atores se esquecem de adaptar
as técnicas de interpretação, assim como a técnica vocal para que toda a
plateia possa ver, perceber e ouvir as histórias que lhes estão sendo contadas.
Nessa apresentação, os atores não conseguiram fazer uso do seu aparelho vocal
de maneira eficiente para atender às necessidades de um teatro com as dimensões
do Guarany.
Quem já se apresentou nesse teatro, sabe
que sua acústica demanda uma técnica vocal com os resultados que os cantores de
ópera conseguem, quando ali se apresentam. A preparação vocal de Célio Rentroya
e Babaya deveria ter trabalhado esse tipo de particularidade com o elenco do
espetáculo. Uma grande parte de toda a história da peça simplesmente não foi
ouvida por quem estava da metade para o final da plateia. O texto de Augusto
Boal é muito profundo. Porém, perdeu sua força a partir do momento em que o
público não conseguia escutá-lo.
Se o elenco não dispõe de técnica vocal
para enfrentar uma plateia com as dimensões e características acústicas do
Theatro Guarany - até mesmo porque nenhum ator é obrigado a ter formação neste
tipo de técnica - cabe ao grupo optar pela utilização de todo o arsenal
tecnológico de que dispomos nos dias de hoje. Não podemos negar a tecnologia em
pleno século XXI. Seria muita burrice alguém referir que os atores não podem
usar microfones de lapela nos dias de hoje. A tecnologia surgiu para nos
facilitar certas coisas e, nesse caso, até mesmo para auxiliar que o texto dos
espetáculos possa ser ouvido por todos os espectadores nos teatros. Um ator não
é melhor que outro apenas pelo fato de não usar microfones ao se apresentar.
Nem tampouco um ator é mais competente ou talentoso porque dispõe de um
aparelho vocal que o permite ser ouvido em quaisquer espaços. Isso apenas
significa que ou ele teve uma ótima formação técnico-vocal ou que é um
favorecido anatomo e fisiologicamente falando. O elenco de Murro em Ponta de Faca deveria ter utilizado microfones durante a
apresentação para que o público ali presente pudesse, ao menos, ter ouvido a
história.
Falando em Augusto Boal, em um certo
momento do espetáculo, há uma quebra na história para os atores proporem um
diálogo mais próximo com os espectadores e ilustrarem a percepção de um
distanciamento entre atores e personagens. Entretanto, dada a opção de técnica
de atuação do elenco ser tão arraigada nos referenciais televisivos, esse
momento perdeu a sua força. Talvez, a opção de estilo de atuação do elenco
funcione melhor em teatros mais intimistas, onde o público possa enxergá-los
mais de perto e observar as nuances de suas expressões. Mesmo assim, o forte
diálogo estilístico com a linguagem televisiva fazia com que o universo
interior das personagens perdesse a sua força, sobretudo em um teatro do tipo
italiano e com as dimensões operísticas do Guarany.
Outro aspecto que gostaria de destacar, se
refere à maneira como Boal consegue construir um conflito externo às cenas com
uma intensidade dramática e tensão muito fortes. Entretanto, toda essa tensão e
intensidades não eram vistas em cena. Os atores não conseguiam transparecer em
suas atuações que existia um conflito externo ao palco que estava afetando à
vida de muitas pessoas, inclusive a de seus personagens. Talvez, esse detalhe
tenha passado em branco pela direção, ao deixar os corpos dos seus atores tão
relaxados em cena e suas interpretações tão intimistas.
No que se refere ao elenco, não posso
deixar de destacar a atriz Raquel Rizzo pelo seu excesso de over acting. A expressão over acting já carrega em si o conteúdo
de exagero e equívoco. Mas, essa atriz exagerou na dose. Em vários momentos
tentava chamar a atenção para si, exagerando além da conta nas reações e
perdendo o timing. Isso pode até
funcionar em programas televisivos de “humor” com gosto duvidoso, mas, no
teatro, beira à canastrice e à provocação do riso fácil. Nenhuma das
personagens escritas por Boal era rasa. Mas, às vezes, equívocos na construção
das personagens ou falta de uma mão firme do diretor para controlar os ímpetos
do elenco, acabam transformando algumas personagens em algo muito menor do que
o dramaturgo compôs, quando as criou.
A temática da ditadura militar que o Brasil
viveu durante o século XX jamais deve ser esquecida e precisa ser levada aos
palcos com maior frequência. Entretanto, qualquer montagem teatral, abordando o
assunto que for, jamais deve esquecer de se dispor ao diálogo com a plateia,
para que o espetáculo não fique hermético. Além disso, os atores têm a
obrigação de saberem adaptar suas técnicas para qualquer espaço onde venham a
se apresentar e cabe ao diretor saber chamar a atenção dos atores para esse
fato.
Portanto, apesar do valor histórico da peça
Murro em Ponta de Faca, o que vimos
não saiu do palco, não chegou no espectador e ficou muito aquém da obra de
Augusto Boal. Porém, fica aqui o registro de um bom exemplo de situações
técnicas que podem ocorrer quando um espetáculo se apresenta em diferentes tipos
de espaços teatrais e que jamais devem ser esquecidas pelos grupos e companhias
de teatro ao saírem em turnês com os seus trabalhos.
Vagner Vargas
Ator – DRT: 6606
Crítico de Teatro