A
história do município de Pelotas é sempre lembrada pelo período em que foi uma
das cidades mais prósperas e ricas do Brasil, onde a indústria do charque
progredia em escala geométrica. Para que toda essa evolução ocorresse, foi
utilizada a mão de obra escrava, trazida da África.
Conforme
publicado em 10/01/2009, em Terra de Andrea (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/rio-de-sangue-parte-i-o-comeo.html>),
inicialmente, a Província de São Pedro era habitada pelos povos indígenas.
Paulatinamente, a colonização europeia começou a povoar a região. No final do
século XVII, inicia a instalação da primeira Charqueada onde, atualmente, está
localizado o município de Pelotas. Para que a produção de charque atingisse
escala industrial, era necessário que houvesse um tipo de habilidade e
tecnologia que permitisse o abate de animais em larga escala de maneira rápida
e eficiente.
Os
povos indígenas não dominavam as técnicas para a matança de animais da maneira
como os africanos realizavam. Devido a particularidades dos cultos religiosos
africanos, os povos vindos da África conseguiam sacrificar o gado de maneira
mais rápida e eficiente, sem causar maiores sofrimentos aos animais. Essa
habilidade foi fundamental para o desenvolvimento da indústria do charque, ou
seja, as charqueadas foram um sucesso econômico graças à tecnologia que a mão
de obra africana trouxe para o desenvolvimento dessa cidade.
Durante
certo tempo, ao longo do século XIX, os escravos chegaram a representar mais de
60% da população da cidade de Pelotas. Seus conhecimentos foram importantes não
somente por viabilizarem o apogeu das charqueadas, mas também por serem
responsáveis pela construção dos prédios e casarões da cidade, como por
exemplo, os moldes das telhas que eram feitos de barro na perna dos escravos.
Toda
essa riqueza atraiu para essa região muitos intelectuais e artistas,
responsáveis pelos primeiros registros artístico históricos da região das
charqueadas durante o século XIX (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/parte-ii-o-processo-de-produo.html>).
Os registros publicados por Andrea Terra,
divididos em quatro partes, trazem breves relatos históricos e imagens sobre um
período pouco falado sob o ponto de vista da importância da colonização
africana para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/parte-iii-revoluo.html>).
Para
finalizar, o blog Terra de Andrea
ainda nos aponta para uma reflexão do que foi feito com os escravos após a sua
abolição e abertura das portas das senzalas. Será que eles realmente se
tornaram livres? (<http://terradeandrea.blogspot.com.br/2009/01/parte-iv-opulncia-abolio-queda.html>).
Iniciei
essa crítica fazendo uma breve introdução citando um texto que, traz todos os
referenciais e elementos relacionados ao espetáculo Rio de Sangue, apresentado pela Cia de Dança Daniel Amaro, no dia
08 de junho de 2013, no Theatro Guarany. Embora os textos que eu referenciei
anteriormente não estejam publicados em um livro, nem sejam de autoria de um
historiador(a)com publicações reconhecidas em todo o país, tanto a autoria
deles, quanto o seu conteúdo provém de uma fonte que agregam a si a propriedade
de poder contar essa história através dos relatos intrínsecos de quem
participou dessas histórias ao longo das suas gerações familiares.
Notadamente, os textos publicados em Terra
de Andrea podem servir de base para a construção do espetáculo Rio de Sangue.
Porém, com uma peculiaridade que primordialmente os diferencia: no texto do blog, a autora enaltece, valoriza e
fornece os devidos registros sobre a importância da colonização africana para o
desenvolvimento do nosso estado, já o espetáculo de dança se fixa mais na
alegoria das contribuições artísticas que a África trouxe ao Brasil.
Apesar das contribuições da cultura
africana serem enormes no que constitui o que hoje denominamos como identidade
cultural brasileira, jamais podemos esquecer o alto preço que o povo vindo da
África pagou ao ser retirado de sua terra e ser escravizado no Brasil. Os rios
de sangue não podem ser amenizados, mascarados ou esquecidos! Isso não
significa que devemos nos fixar nas brutalidades e sofrimentos que os povos
africanos sofreram nas mãos dos nossos colonizadores. Muito pelo contrário, ao
mantermos os rios de sangue sempre vivos em nossa memória, podemos não somente
nos envergonhar desse passado histórico, como também refletirmos para que esse
tipo de desrespeito à condição humana seja repetido nas gerações futuras.
Nesse sentido, acredito que o espetáculo Rio de Sangue colocou essa situação de maneira
muito superficial, parecida com a perspectiva que nossos colonizadores colocam
nos livros de história, escritos pelas brancas mãos descendentes dos povos
europeus. A perspectiva do enredo também me parecia com a “história que os
charqueadores querem contar”, muito longe do desnudamento do que significou a
brutalidade exercida pelos charqueadores sobre seus escravos.
Senti falta de ver o rio de sangue.
Obviamente que, o rio de sangue também está relacionado ao sangue das milhares
de cabeças de gado, abatidas diariamente e que era despejado no Arroio Pelotas,
o que forneceu esse nome ao local. Entretanto, o rio de sangue relacionado à
condição humana, escravizada, dilacerada em seus direitos, dignidade e respeito
jamais pode ser esquecido. Acredito que o espetáculo teria tocado de maneira
mais eficiente à plateia presente, se tivesse mergulhado nas reais implicações
do rio de sangue africano que foi derramado pelas mãos charqueadoras
pelotenses.
Mesmo com essa particularidade, a direção
de Daniel Amaro soube administrar muito bem alguns quesitos de sua encenação.
Gostaria de destacar os coros presentes em todo o espetáculo. Ao mesmo tempo em
que nos passavam uma ideia de unidade de grupamento populacional, o que podemos
relacionar com os povos escravizados e trazidos em grupos para o Brasil, também
compunham uma unidade que imprimia sua identidade na maneira de contar a
história do espetáculo em grupo.
Alguns solos, pás-de-deux e pás-de-trois
se destacavam dos demais em alguns momentos, explorando planos diferenciados
para o desenho coreográfico, assim como também preenchiam e davam movimento ao
espaço cênico como um todo. Embora as coreografias fossem bastante alegres,
exaltando aspectos de felicidade, o impacto que Daniel desejava seria mais
forte, caso ele “pesasse a mão” e não tivesse receio de aproximar sua dança dos
sofrimentos a que os africanos foram submetidos em solo pelotense.
Apesar de ressaltar aqui nesse texto a
leveza do espetáculo Rio de Sangue,
não posso deixar de render elogios a Daniel Amaro pela maneira como ele
conseguiu inserir o samba em suas coreografias. Desconstruindo-o em alguns
momentos, sem retirar-lhe as características que o constituem e também por
mostrar que o samba pode ser uma maneira de se contar a história em um
espetáculo de dança afro, sem cair nos estereótipos televisivos. O elenco de
bailarinos, muito coesos, conseguia nos mostrar uma outra alternativa para
pensarmos na força que o samba pode ter, enquanto coreografia de um espetáculo
de dança contemporânea.
O espetáculo trazia no seu elenco os
seguintes interpretes e bailarinos: Anderson
Martha, Carolina Paz, Carolina Rodrigues, Fernanda Chagas, Janaína Gutierres,
Jaqueline Vigorito, Juliana Coelho, Karina Azevedo, Lisia Peixoto, Paula
Farias, Thomas Marinho, Thuani Siveira. O figurino e Cenário ficaram por conta
de Júlio Barbosa, fotografia do excelente Neco Tavares, edição de Imagens de
Roger Terres, assistentes de direção Fabiana dos Santos e Victória Amaro. Além
disso, a contra-regragem ficou por conta de Iver Folha e Douglas Passos. As
coreografias foram criadas por Mano Amaro em parceria com o seu irmão Daniel
Amaro que também assina a direção artística do espetáculo. A trilha Sonora
continha obras de Djalma Corrêa, Cyro Baptista, Domínio Popular, Cantos
Sagrados de Brasil e Cuba, Chico César, Afro Anatolian Tales, Baiafro e Dave
Pike Set, Cleber Viera, Mestre João Pequeno, Las Brasa Afro e Serjola.
Devido ao fato desse espetáculo ser tão
ligado à história do povo africano trazido ao Brasil, acredito que a utilização
de som mecânico não fosse a mais adequada para o contexto cultural. Em certo
momento, observamos que um tamboreiro entra em cena e executa a trilha musical
de parte das coreografias, mas apenas de parte delas. Acredito que o efeito da
trilha musical seria mais forte e viria mais ao encontro da temática abordada,
se todas as músicas fossem tocadas ao vivo por tamboreiros e cantores, como
aqueles que encontramos nos terreiros de umbanda, batuque, candomblé e demais
manifestações culturais e religiosas de matriz africana.
Esse tipo de história precisa trazer a
força de suas raízes, a força do tambor sendo tocado ao vivo, de todos os
instrumentos que caracterizam as músicas de matriz africana que ainda
sobrevivem nos cultos religiosos dessa origem. Inclusive, acredito que esse
tipo de opção auxiliaria os bailarinos a mergulharem no universo de suas
personagens durante o espetáculo.
Alguns aspectos dos figurinos de Júlio
Barbosa, me remeteram a uma coleção da stylist
Doida da Espanha, que podemos ver nesse endereço: http://doidadaespanha.blogspot.com.br/. Nessa
coleção, Doida da Espanha se inspirou nos movimentos da vegetação encontrada às
margens do Canal São Gonçalo e nos movimentos das águas que circulam pelas
Charqueadas. Além disso, essa coleção também tem um forte diálogo com a maneira
como Andrea Terra conta a história dos africanos escravizados em Pelotas em seu
blog. Apesar de fazer alguns anos que
Doida da Espanha lançou essa coleção inspirada no tempo das Charqueadas, o
movimento, a qualidade de execução e concepção desse tipo de proposta, se
desenvolvido com essa perspectiva, também criaria um impacto visual bastante
forte ao espetáculo Rio de Sangue.
Refiro isso, pois senti a necessidade dos figurinos também enfatizarem o peso
desse recorte histórico da nossa região.
Infelizmente, apesar da grande qualidade
criativa dos artistas envolvidos no espetáculo, não podemos deixar de ponderar
o fato de que, mesmo com toda a criatividade, não se consegue executar um
projeto artístico sem investimentos. Saliento esse fato, pois aqui, no trabalho
dessa companhia de dança, já visualizamos um bom exemplo da necessidade dos
nossos governos investirem mais em cultura. O espetáculo Rio de Sangue ilustra uma parte da nossa história e para que a
qualidade do produto artístico oferecido aos nossos espectadores esteja à
altura do talento de sua equipe e do que é de direito dos espectadores, os
nossos governos precisariam investir mais em trabalhos artísticos desse tipo ao
invés de alocarem grandes montantes de verbas para projetos que além da qualidade
duvidosa, pouco agregam a nossa população.
Outra situação que também me deixou
bastante curioso foi o fato de haverem apenas dois bailarinos homens no
espetáculo. Claro, compreendo totalmente o fato de haverem poucos homens que se
dedicam, tem talento e força para se jogarem no mundo da dança. Mas, senti
falta de um elenco masculino em maior número, sobretudo para contar esse tipo
de história. Mas, infelizmente, essa é uma dura realidade que o diretor do
espetáculo terá que enfrentar. Tomara que, ao longo do tempo, outros homens
vejam esse espetáculo e despertem o seu interesse pela dança como um todo.
Atualmente, a utilização de recursos
tecnológicos tem sido uma constante em todas as artes cênicas. Não podemos
negar o advento tecnológico, nem as suas possibilidades como meio de interação
com a plateia e, também, como forma de agregar outras qualidades aos
espetáculos. No entanto, a sua utilização deve ser muito bem ponderada para que
não fique gratuita. Já comentei isso algumas vezes, pois, comumente, observo
que alguns espetáculos de teatro usam as tecnologias mais para justificarem um
apelo de verbas às fontes de fomento, do que à real necessidade desses recursos
à coerência da encenação.
Em face disso, considero que as projeções
utilizadas durante as cenas do espetáculo deveriam ter um diálogo mais íntimo e
eficiente com as cenas. Refiro isso, pois, em alguns momentos, observamos focos
diferentes, ou seja, o que era projetado trazia consigo informações que ficavam
ali, enquanto o que se fazia no palco continha outras informações que se
encerravam em si. Apesar de estarem todas dentro de um mesmo contexto, as
projeções e as cenas do palco não dialogavam entre si. Ao dizer isso, não quero
passar a imagem rasa de que eu estaria me referindo ao fato das coreografias
terem que fazer um jogral com as projeções. Longe disso! O que saliento é que a
intensidade do “entre” elas deve ser explorada. Quando um espetáculo consegue
atingir esse aspecto, o impacto visual além de ser muito eficiente, consegue
envolver os espectadores no contexto da história que está sendo contada.
Tendo em vista a rara quantidade de
espetáculos de dança afro produzidos no Brasil, apesar da forte herança
cultural africana em nosso país, considero que a Cia Daniel Amaro representa um
importante papel na sobrevivência das origens culturais africanas nos palcos
brasileiros. O que não podemos deixar é que a história de como os povos
africanos foram trazidos ao Brasil, seja contada de maneira superficial, como
os livros de história costumam fazer.
Além disso, ao existirem espetáculos de
dança afro nos palcos brasileiros, também estamos resistindo e mostrando a
importância da cultura de matriz africana na constituição da nossa identidade
nacional. Assim como o período de escravidão africana costuma ser atenuado
pelos caucasianos contadores de histórias, as danças e outras manifestações
culturais vindas da África também costumam ser estigmatizadas, estereotipadas,
amordaçadas e mantidas longe dos palcos brasileiros, em detrimento das artes de
origem europeia.
Não podemos deixar que a supremacia
caucasiana continue ditando o “seu lado da história” e “dificultando” a
exposição das barbáries a que nossos ancestrais europeus submeteram os povos
vindos da África. Nesse sentido, quando falarmos dos diversos rios de sangue do
nosso país, não podemos ter medo de nos jogarmos neles, mergulharmos em suas
dores e sofrimentos, para mostrarmos que, apesar de tudo isso, esse povo
possibilitou que se construísse uma nação que hoje tanto divulga a sua
constituição mestiça, formada pelos diversos matizes que aqui vieram, se
estabeleceram e se misturaram, para formar o que hoje chamamos de povo
brasileiro.
Daniel Amaro e sua companhia desempenham um
importante papel nesse contexto, na medida em que lutam para manter viva a
dança de origem africana nos palcos brasileiros que tanto sofrem pressões embranquecedoras de estéticas e
linguagens cênicas. Portanto, apesar de ter pontuado alguns aspectos do
espetáculo Rio de Sangue, considero
que ele representa um importante papel de resistência da cultura negra em
Pelotas.
Vagner Vargas
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