domingo, 3 de novembro de 2013

Teatro Ironizando a Academia



     Aqueles que já percorreram os bancos acadêmicos, seja na graduação ou durante a pós-graduação, conhecem certos estereótipos de comportamento que algumas pessoas adotam para serem respeitadas, quando a sua competência profissional não sustenta tal reconhecimento. Apesar de, no Brasil, as universidades serem responsáveis pela maior parte das pesquisas realizadas no país, muitas vezes, a exigência do volume de produção de estudos acaba superando a importância do conteúdo do que está sendo analisado, as metodologias adotadas e a propriedade no discurso de quem profere tais análises.

     Estes foram apenas alguns aspectos abordados durante o espetáculo “V ao Cubo”, apresentado no dia 29 de setembro de 2013, na Bibliotheca Pública Pelotense. A dramaturgia composta pelo grupo porto alegrense também ironizou os exageros na utilização de recursos áudio visuais nas salas de aula, seminários e palestras. Por diversas vezes, o grupo deslocava o data show, deixando as projeções fora dos padrões e formalidades acadêmicas, além de excessivamente tentarem ilustrar aquilo que estavam dizendo. Fatos estes comumente ocorridos durante algumas palestras e aulas nas universidades, quando palestrantes se utilizam de vocabulário bastante vasto para dizerem e repetirem as mesmas situações que as próprias imagens já esclareceriam por si só, pois não conseguem dispor de uma significação reflexiva mais profunda para expandirem o debate das temáticas ali abordadas. Por mais ridícula e exagerada que a cena teatral exponha esses fatos, eles não são uma raridade nos círculos “intelectuais”, quando o que menos importa é o conteúdo do que se está discutindo ou, quando, para valorizar um assunto/pesquisa de competência frágil, se cria uma aura intelectual defendida por um vocabulário rebuscado, respaldado por bibliografias que o grande público não tem obrigação – nem interesse – de conhecer.

     Por mais caricatos e estereotipados que os personagens do espetáculo pudessem parecer, quem já circulou pelos bancos acadêmicos, sabe que aqueles tipos de pessoas existem e fazem com que a sua imagem intelectualóide seja respeitada mais pela afirmação de uma postura arrogante que realmente acredita na profundidade de seu discurso parco, achando ser superior ao restante da população, do que pela importância do seu trabalho para a humanidade. No que se refere ao campo das artes, os estereótipos ali retratados ainda se tornam mais comuns, quando identificamos pessoas que se utilizam de um exagero na caracterização da sua imagem pessoal para serem identificados como “diferentes” ante aos demais e, assim, serem chamados de “artistas”, já que a sua falta de competência artística não o faz por si só.

     A peça parte de uma ironia em cima de uma pesquisa acadêmica para identificar os motivos pelos quais estava faltando papel higiênico nos banheiros da universidade. Para tanto, alguns doutores propõem uma série de estudos e teorias sobre as muitas possibilidades para tais fatos. Com um argumento metafórico bastante debochado, o grupo compara a realização de alguns estudos acadêmicos, assim como o que esses pesquisadores consideram como conhecimento legitimado pela intelectualidade, àquilo que fazemos dentro dos banheiros e que costuma sair pelos ralos. As comparações que faço aqui não são gratuitas, pois estão presentes ao longo de todas as palestras e seminários apresentados pelos personagens. A grande crítica fica em torno da banalidade do assunto de algumas pesquisas para as quais o governo investe altas cifras e permite a utilização da carga horária de muitos pesquisadores para assuntos defasados ou redundantes por si só.

     O desenvolvimento da história se apresenta ironicamente mais crítico àqueles que já presenciaram situações onde os “pesquisadores” se respaldam em diversas referenciações baseadas em teóricos da filosofia, geralmente os citando a esmo, sem nem ao menos significarem o real direcionamento dos conceitos daquele filósofo. Como a grande maioria do público que assiste a essas palestras, seminários ou eventos não costuma ler os referenciais que são citados pelos palestrantes, nem sabe se o que está sendo dito faz sentido ou se está de acordo com os princípios propostos pelo seu autor. Então, acaba que a postura “intelectual”, o vocabulário rebuscado e a imagem construída de “profissional competente” acabam sendo mais importantes do que o conteúdo do seu trabalho.

     A peça dirigida por Natália Soldera, tem no elenco Ander Belotto, Jéssica Lusia, Leonardo Silveira, Matheus Melchionna e Silvana Rodrigues. Mesmo com uma proposta tão irônica, o espetáculo, enquanto encenação, é fraco. Um dos motivos que podemos atribuir a esse fato se deve à especificidade das temáticas abordadas, pois somente quem já presenciou aquelas situações acadêmicas, sabe o quanto a peça está debochando dos comportamentos estereotipados da academia. Obviamente que, o público em geral, mesmo sem ter frequentado esses eventos universitários, pode se divertir com as situações. Mas, daí, eu particularmente, não sei se conseguem compreender a amplitude do que está sendo ironizado. Refiro isso, pois a proposta do espetáculo pode tê-lo deixado hermético ao assumir tamanha especificidade crítica.

     Além disso, apesar do grupo ter aproveitado bem o espaço e a estrutura de que dispunham no salão da Bibliotheca Pública Pelotense, os elementos da encenação, tais como figurinos, cenário, iluminação, maquiagem e trilha sonora foram deixados em segundo plano, quando comparamos ao conteúdo irônico do texto. Paradoxalmente, o grupo ao criticar os discursos acadêmicos, acabou criando um espetáculo bem nos moldes conceituais dos cursos universitários de teatro, onde o experimentalismo está mais direcionado ao exercício dos conceitos abordados nas salas de aula das universidades, do que às propostas artísticas que são levadas ao mercado teatral para o público em geral.

     O grupo é bastante jovem e, provavelmente, todo formado por estudantes universitários de teatro. Esse fato ilustra bem algumas escolhas estilísticas de interpretação que são próprias da inexperiência no mercado teatral. No entanto, é sempre revigorante assistir a jovens atores em busca da comunicação com os espectadores de maneira eficiente e correndo atrás da verossimilhança cênica que apenas a carreira artística – longe dos conceitos acadêmicos - e o exercício diário nos palcos os ensinarão.

     Portanto, para terminar esse texto, gostaria, ainda, de ressaltar outro aspecto paradoxal presente nesse espetáculo: a inexperiência do grupo e a coragem em olharem para a estrutura onde buscam sua formação acadêmica e criticá-la. Mesmo sendo tão jovens, os integrantes desse grupo conseguiram ter maturidade suficiente para perceberem que a carreira artística é feita mais por vocação, preparo técnico e vivência nos palcos, do que por discursos acadêmicos ornamentados por belos vocabulários.

     Além disso, justamente por serem tão jovens, penso eu que detenham a coragem suficiente para criticarem a academia, sem temerem os imensos discursos, teses e teorias que serão gerados dentro dos muros dos templos acadêmicos com o intuito de deslegitimar as críticas que o espetáculo faz às verdades acadêmicas amplamente protegidas e estabelecidas dentro dos seus palácios. O teatro brasileiro precisa disso: artistas corajosos. Corajosos em se reconhecerem como artistas no seu ofício, sem precisarem do aval acadêmico para nada. Afinal, a academia costuma criar suas teorias sobre o teatro, baseada naquilo que observa do alto de suas torres, enquanto que os artistas trabalham na carpintaria do seu ofício diariamente em cima dos tablados.

     Claro que não podemos ser ingênuos e negar que, dada à crise do setor cultural brasileiro, com políticas que relegam aos artistas a condição de marginalizados dos investimentos governamentais, as academias acabam sendo o refúgio para alguns poucos artistas que conseguem adentrar esses templos com o intuito de adquirem a sua subsistência. Porém, como os artistas costumam ter como o seu trabalho a arte em si, dificilmente, o meio acadêmico lhe permite um espaço no seu mundo das teses e teorias. Muitas vezes, um excelente artista tem sua entrada na academia posta em detrimento à imagem pessoal “alternativa”  e do discurso “floreado” de alguns “intelectuais”.

     O que isso provoca?

     Esse fato permite que a academia mantenha seus círculos sagrados, vitalícios e hereditários de conceitos que se legitimam entre si, se afastando cada vez mais do real ofício dos artistas da cena. Com tantas teses e teorias sendo divulgadas sobre os conceitos das artes cênicas e de como devem se enquadrar nesses conceitos, o público acaba se sentindo burro e não pertencente aos espaços artísticos. O que observamos com isso? Plateias cada vez mais vazias.

     Desse modo, finalizo aqui re-afirmando que a crítica proposta pelo espetáculo “V ao Cubo” vai muito além de um deboche sobre as aulas universitárias. As reflexões que podemos tirar dali, servem, inclusive, para pensarmos sobre o que estamos deixando fazer com as artes cênicas como um todo em nosso país.

Vagner Vargas
Ator – DRT: 6606

Crítico de Teatro

Nenhum comentário:

Postar um comentário