Aqueles que já percorreram os bancos
acadêmicos, seja na graduação ou durante a pós-graduação, conhecem certos
estereótipos de comportamento que algumas pessoas adotam para serem
respeitadas, quando a sua competência profissional não sustenta tal
reconhecimento. Apesar de, no Brasil, as universidades serem responsáveis pela
maior parte das pesquisas realizadas no país, muitas vezes, a exigência do
volume de produção de estudos acaba superando a importância do conteúdo do que
está sendo analisado, as metodologias adotadas e a propriedade no discurso de
quem profere tais análises.
Estes foram apenas alguns aspectos
abordados durante o espetáculo “V ao Cubo”, apresentado no dia 29 de setembro
de 2013, na Bibliotheca Pública Pelotense. A dramaturgia composta pelo grupo porto
alegrense também ironizou os exageros na utilização de recursos áudio visuais
nas salas de aula, seminários e palestras. Por diversas vezes, o grupo
deslocava o data show, deixando as
projeções fora dos padrões e formalidades acadêmicas, além de excessivamente
tentarem ilustrar aquilo que estavam dizendo. Fatos estes comumente ocorridos
durante algumas palestras e aulas nas universidades, quando palestrantes se
utilizam de vocabulário bastante vasto para dizerem e repetirem as mesmas
situações que as próprias imagens já esclareceriam por si só, pois não
conseguem dispor de uma significação reflexiva mais profunda para expandirem o
debate das temáticas ali abordadas. Por mais ridícula e exagerada que a cena
teatral exponha esses fatos, eles não são uma raridade nos círculos
“intelectuais”, quando o que menos importa é o conteúdo do que se está
discutindo ou, quando, para valorizar um assunto/pesquisa de competência
frágil, se cria uma aura intelectual defendida por um vocabulário rebuscado,
respaldado por bibliografias que o grande público não tem obrigação – nem
interesse – de conhecer.
Por mais caricatos e estereotipados que os
personagens do espetáculo pudessem parecer, quem já circulou pelos bancos
acadêmicos, sabe que aqueles tipos de pessoas existem e fazem com que a sua
imagem intelectualóide seja
respeitada mais pela afirmação de uma postura arrogante que realmente acredita
na profundidade de seu discurso parco, achando ser superior ao restante da
população, do que pela importância do seu trabalho para a humanidade. No que se
refere ao campo das artes, os estereótipos ali retratados ainda se tornam mais
comuns, quando identificamos pessoas que se utilizam de um exagero na
caracterização da sua imagem pessoal para serem identificados como “diferentes”
ante aos demais e, assim, serem chamados de “artistas”, já que a sua falta de
competência artística não o faz por si só.
A peça parte de uma ironia em cima de uma
pesquisa acadêmica para identificar os motivos pelos quais estava faltando
papel higiênico nos banheiros da universidade. Para tanto, alguns doutores
propõem uma série de estudos e teorias sobre as muitas possibilidades para tais
fatos. Com um argumento metafórico bastante debochado, o grupo compara a realização
de alguns estudos acadêmicos, assim como o que esses pesquisadores consideram
como conhecimento legitimado pela intelectualidade, àquilo que fazemos dentro
dos banheiros e que costuma sair pelos ralos. As comparações que faço aqui não
são gratuitas, pois estão presentes ao longo de todas as palestras e seminários
apresentados pelos personagens. A grande crítica fica em torno da banalidade do
assunto de algumas pesquisas para as quais o governo investe altas cifras e
permite a utilização da carga horária de muitos pesquisadores para assuntos
defasados ou redundantes por si só.
O desenvolvimento da história se apresenta
ironicamente mais crítico àqueles que já presenciaram situações onde os
“pesquisadores” se respaldam em diversas referenciações baseadas em teóricos da
filosofia, geralmente os citando a esmo, sem nem ao menos significarem o real
direcionamento dos conceitos daquele filósofo. Como a grande maioria do público
que assiste a essas palestras, seminários ou eventos não costuma ler os referenciais
que são citados pelos palestrantes, nem sabe se o que está sendo dito faz
sentido ou se está de acordo com os princípios propostos pelo seu autor. Então,
acaba que a postura “intelectual”, o vocabulário rebuscado e a imagem
construída de “profissional competente” acabam sendo mais importantes do que o
conteúdo do seu trabalho.
A peça dirigida por Natália Soldera, tem no
elenco Ander Belotto, Jéssica Lusia, Leonardo Silveira, Matheus Melchionna e
Silvana Rodrigues. Mesmo com uma proposta tão irônica, o espetáculo, enquanto
encenação, é fraco. Um dos motivos que podemos atribuir a esse fato se deve à
especificidade das temáticas abordadas, pois somente quem já presenciou aquelas
situações acadêmicas, sabe o quanto a peça está debochando dos comportamentos
estereotipados da academia. Obviamente que, o público em geral, mesmo sem ter
frequentado esses eventos universitários, pode se divertir com as situações.
Mas, daí, eu particularmente, não sei se conseguem compreender a amplitude do
que está sendo ironizado. Refiro isso, pois a proposta do espetáculo pode tê-lo
deixado hermético ao assumir tamanha especificidade crítica.
Além
disso, apesar do grupo ter aproveitado bem o espaço e a estrutura de que
dispunham no salão da Bibliotheca Pública Pelotense, os elementos da encenação,
tais como figurinos, cenário, iluminação, maquiagem e trilha sonora foram
deixados em segundo plano, quando comparamos ao conteúdo irônico do texto.
Paradoxalmente, o grupo ao criticar os discursos acadêmicos, acabou criando um espetáculo
bem nos moldes conceituais dos cursos universitários de teatro, onde o
experimentalismo está mais direcionado ao exercício dos conceitos abordados nas
salas de aula das universidades, do que às propostas artísticas que são levadas
ao mercado teatral para o público em geral.
O grupo é bastante jovem e, provavelmente,
todo formado por estudantes universitários de teatro. Esse fato ilustra bem
algumas escolhas estilísticas de interpretação que são próprias da
inexperiência no mercado teatral. No entanto, é sempre revigorante assistir a
jovens atores em busca da comunicação com os espectadores de maneira eficiente
e correndo atrás da verossimilhança cênica que apenas a carreira artística –
longe dos conceitos acadêmicos - e o exercício diário nos palcos os ensinarão.
Portanto, para terminar esse texto,
gostaria, ainda, de ressaltar outro aspecto paradoxal presente nesse
espetáculo: a inexperiência do grupo e a coragem em olharem para a estrutura
onde buscam sua formação acadêmica e criticá-la. Mesmo sendo tão jovens, os
integrantes desse grupo conseguiram ter maturidade suficiente para perceberem
que a carreira artística é feita mais por vocação, preparo técnico e vivência
nos palcos, do que por discursos acadêmicos ornamentados por belos
vocabulários.
Além disso, justamente por serem tão
jovens, penso eu que detenham a coragem suficiente para criticarem a academia,
sem temerem os imensos discursos, teses e teorias que serão gerados dentro dos
muros dos templos acadêmicos com o intuito de deslegitimar as críticas que o
espetáculo faz às verdades acadêmicas amplamente protegidas e estabelecidas
dentro dos seus palácios. O teatro brasileiro precisa disso: artistas
corajosos. Corajosos em se reconhecerem como artistas no seu ofício, sem
precisarem do aval acadêmico para nada. Afinal, a academia costuma criar suas
teorias sobre o teatro, baseada naquilo que observa do alto de suas torres,
enquanto que os artistas trabalham na carpintaria do seu ofício diariamente em
cima dos tablados.
Claro que não podemos ser ingênuos e negar
que, dada à crise do setor cultural brasileiro, com políticas que relegam aos
artistas a condição de marginalizados dos investimentos governamentais, as
academias acabam sendo o refúgio para alguns poucos artistas que conseguem
adentrar esses templos com o intuito de adquirem a sua subsistência. Porém,
como os artistas costumam ter como o seu trabalho a arte em si, dificilmente, o
meio acadêmico lhe permite um espaço no seu mundo das teses e teorias. Muitas
vezes, um excelente artista tem sua entrada na academia posta em detrimento à
imagem pessoal “alternativa” e do
discurso “floreado” de alguns “intelectuais”.
O que isso provoca?
Esse fato permite que a academia mantenha
seus círculos sagrados, vitalícios e hereditários de conceitos que se legitimam
entre si, se afastando cada vez mais do real ofício dos artistas da cena. Com
tantas teses e teorias sendo divulgadas sobre os conceitos das artes cênicas e
de como devem se enquadrar nesses conceitos, o público acaba se sentindo burro
e não pertencente aos espaços artísticos. O que observamos com isso? Plateias
cada vez mais vazias.
Desse modo, finalizo aqui re-afirmando que
a crítica proposta pelo espetáculo “V ao Cubo” vai muito além de um deboche
sobre as aulas universitárias. As reflexões que podemos tirar dali, servem,
inclusive, para pensarmos sobre o que estamos deixando fazer com as artes
cênicas como um todo em nosso país.
Vagner Vargas
Ator – DRT: 6606
Crítico de Teatro
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