domingo, 3 de novembro de 2013

De Tanto Esmurrar a Faca, Cortou a Relação com o Espectador



     O período de ditadura militar, vivido no Brasil durante boa parte do século XX, continua sendo tabu e dificilmente é levado como temática aos palcos dos teatros, assim como às telas dos cinemas brasileiros. De maneira semelhante também observamos a discreta produção literária que consegue liberdade, ainda nos dias de hoje, para desvelar os horrores a que a comunidade civil foi sujeitada durante a dominação militar em nosso país.

     A importância dos debates sobre essa parte da nossa história, assim como a relevância desse contexto trazido aos nossos palcos é inquestionável. Entretanto, não é porque se trata de um assunto com fortes implicações históricas que toda abordagem consiga tocar o espectador contemporâneo. Apesar do texto Murro em Ponta de Faca, de Augusto Boal, ser datado, o seu conteúdo e a força da sua mensagem, assim como a dor dos sentimentos de quem é obrigado a se exilar de sua pátria, não perderiam o caráter de empatia com os espectadores, se recebesse uma montagem versátil aos espaços cênicos e mais comprometida com as estéticas teatrais, do que com os clichês televisivos.

     Iniciar qualquer crítica a um texto de Augusto Boal não é uma tarefa fácil, dado o valor histórico, teórico e literário desse artista que propôs uma maneira diferenciada de utilizarmos o teatro como adjuvante à compreensão dos papeis sociais e políticos dos indivíduos muitas vezes apartados dos seus direitos em sociedade. Alguns o tomam por Deus, outros o encaram como um ente intocável e jamais passível de críticas, sejam elas quais forem, antes mesmo de serem geradas. Entretanto, para o início de quaisquer abordagens, devemos sempre compreender que as propostas teatrais de quaisquer grandes nomes da nossa arte, recebem uma forte datação dos seus contextos sócio, histórico, filosófico, político, cultural, econômico e geográfico onde estão inseridos. Isso, de maneira alguma, invalida as contribuições teórico-reflexivas de qualquer um dos “grandes mestres”. Todavia, não podemos incorrer na leviandade e limitação de enclausurarmos as propostas destes grandes pensadores em normativas e regras que devam ser utilizadas e reproduzidas tal e qual os seus criadores o fizeram no período histórico em que estavam vivendo suas inovações artísticas.

     O valor e a qualidade das contribuições dos “grandes mestres”, às vezes, causam um certo temor em algumas pessoas mais despreparadas e desprovidas de repertório argumentativo para poderem questionar e desgostar da maneira como algumas obras são adaptadas e levadas aos palcos contemporâneos. Talvez, esse seja um dos motivos que os levem a aplaudirem em pé a qualquer coisa que assistem e saírem dizendo que realmente gostaram do que viram. Muitas vezes é mais fácil dizer que um espetáculo estava bem montado, do que saber argumentar sobre os defeitos e fragilidades de tal montagem.

     Toda essa introdução foi feita para que eu inicie a falar sobre a peça Murro em Ponta de Faca, de Augusto Boal, apresentada em 01 de novembro de 2013, no Theatro Guarany, em Pelotas. O espetáculo com direção de Paulo José, assistência de direção, de Roberto Souza, contava com o elenco formado por Gabriel Gorosito, Laura Haddad, Nena Inoue, Abilio Ramos, Sidy Correa, Erica Migon e Raquel Rizzo.

     A peça conta a história de 3 casais brasileiros durante o período de ditadura militar no Brasil. A narrativa se desenrola, mostrando como pano de fundo inclusive os conflitos políticos dos países por onde aqueles casais são obrigados a fugir. O contexto histórico deste período no Chile, Argentina e França, por exemplo, também ajudam a tecer o universo dessas personagens. A dramaturgia de Augusto Boal é muito bem composta. O autor sabe como destacar pequenos momentos onde expõe os sentimentos e conflitos de quem é obrigado a fugir do seu país, apenas por discordar das políticas que estão sendo adotadas naquele período, ou neste caso, sendo outorgadas à população. Além disso, Boal também intercala muito bem os momentos mais dramáticos, com conflitos sobre relações entre casais e algumas situações cômicas que o ser humano jamais abandona, mesmo em momentos em que vivencia o horror.

     Apesar da datação histórica, o texto permanece atual no que se refere aos conflitos dos seres humanos, as buscas por identidade, liberdade e felicidade. Porém, os resultados positivos desse texto apenas podem ser percebidos dentro de sua completude, quando recebem uma montagem teatral a sua altura. O que não foi o caso.

     A direção de Paulo José não é ruim. O diretor sabe dispor bem os elementos e as marcações cênicas, explorando muito bem todo o espaço do palco. Porém, devido às marcações de cena, acredito que esse espetáculo tenha sido concebido para teatros pequenos, ou espaços cênicos menores, onde o público possa ficar disposto ao redor dos atores. O direcionamento dos diálogos e das marcações para sentidos que ignoravam a frontalidade da plateia não transpareciam uma opção estética, pareciam mais um equívoco na adaptação dessa apresentação para um teatro com as dimensões e características do Guarany.

     Falando no teatro, ao ver as torres de iluminação em estrutura de torres em cubo em cima do palco, limitando as possibilidades de iluminação, refleti sobre a necessidade de que os proprietários dessa casa de espetáculos façam uma campanha para angariarem fundos para a construção de um urdimento com qualidade digna à apresentação de quaisquer espetáculos em nossa cidade. No entanto, isso não foi motivo para a iluminação concebida por Beto Bruel  e operação de Victor Sabbag comprometer o espetáculo. O iluminador soube retirar os melhores resultados possíveis dentro da estrutura de que dispunha. Porém, acredito que, com um urdimento adequado, a iluminação poderia dispor de maiores possibilidades.

     Os figurinos concebidos por Rô Nascimento, com assistência de Sabrina Magalhães, compunham uma identidade visual adequada ao período histórico por onde a história da peça transitava, conseguindo imprimir as características de cada personagem, valorizando-as e possibilitando a composição do todo na identidade de figurinos. Os elementos de cena concebidos por Ruy Almeida são muito funcionais e ajudam a construir os diferentes desenhos de cena, agregando características de versatilidade e funcionalidade ao cenário.

     As reações da plateia me chamaram a atenção, pois ficava evidente que o público presente estava disposto ao riso e desejando o riso. Porém, esse não era o contexto do espetáculo, nem tampouco se tratava de uma comédia. Mas, os momentos em que a peça retratava situações de diferenças comportamentais entre homens e mulheres, conflitos entre casais e situações de humor, me pareciam ser os instantes em que os espectadores se sentiam mais próximos da história. Esse fato me levou a refletir sobre uma questão muito importante no teatro e que o egoísmo de alguns teóricos costumam defender como fator de pouca importância: o respeito ao público e ao caráter de entretenimento que o teatro também tem.

     Já há algumas décadas, observamos que o público brasileiro tem deixado de frequentar as salas de espetáculos, da mesma maneira que observamos uma forte corrente de teorias acadêmicas ditando o que os artistas devem conceber como propostas estéticas para o teatro. O valor das reflexões teóricas sobre a arte teatral é irrevogável. No entanto, essa peculiaridade se restringe apenas ao campo teórico daqueles que se dispõe a esse estudo. Não podemos obrigar os espectadores a disporem dos mesmos referenciais teóricos que os bancos acadêmicos sentam suas discussões. O público quer o teatro, em sua essência e, como tal, seja ele no estilo, estética ou proposta que for, uma arte que TAMBÉM permita o entretenimento de todos e não apenas de um pequeno grupo de arrogantes intelectualóides que afastam cada vez mais os espectadores das plateias dos teatros, ao imporem seus experimentalismos teóricos, como a única forma validade de produção teatral. Com isso, o público ao se sentir desprovido de repertório teórico para tais eventos – até mesmo porque não tem necessidade de buscar tais embasamentos, já que não tem obrigação de ser um pesquisador de tais teorias – acaba por se afastar das casas de espetáculos e não mais a se identificar com uma das expressões artísticas mais antigas da humanidade: o teatro.

     Enquanto eu via a vontade do público em se entregar ao riso e do quanto as discussões sobre relacionamentos geravam tanta empatia entre eles, também refleti sobre o fato de que a maneira como a peça foi concebida, carregava em si fortes referenciais e saídas fáceis tipicamente características dos clichês televisivos. Este poderia ser o motivo que aproximasse os espectadores desses raros momentos do espetáculo, pois, como o público em geral tem abandonado o hábito de frequentar os teatros, a televisão se tornou o meio pelo qual o público de massa obtém todos os seus referenciais estéticos.  Como, tanto o estilo de atuação, quanto algumas situações da peça eram extremamente parecidos à estética clichê das telenovelas e programas de “humor” da TV brasileira, acredito que o público reconhecia nesses momentos aquilo que está acostumado a assistir diariamente quando ligam os aparelhos de televisão em suas casas. Após esses raros momentos, o público parecia que ficava se perguntando sobre o que estava acontecendo no espetáculo, já que a peça não saía do palco.

     A maneira como as marcações cênicas estavam dispostas acabou tornando o espetáculo hermético, o público queria se sentir incluído naquilo que estava sendo contado. Isso era perceptível a cada vez que lhes era permitido esse tipo de relação e, também, quando conseguiam enxergar as reações dos atores, assim como ouvirem o que estavam dizendo. Só que o espetáculo parecia tão ensimesmado que passava a ideia de que o público estava exilado de sua participação na criação do evento teatral.

     O grande problema dos atores ficarem muito tempo apresentando espetáculos em teatros pequenos ou da concepção ser criada com o intuito de ocupar espaços mais intimistas, é que, quando a montagem é levada a um teatro com dimensões operísticas, os atores se esquecem de adaptar as técnicas de interpretação, assim como a técnica vocal para que toda a plateia possa ver, perceber e ouvir as histórias que lhes estão sendo contadas. Nessa apresentação, os atores não conseguiram fazer uso do seu aparelho vocal de maneira eficiente para atender às necessidades de um teatro com as dimensões do Guarany.

     Quem já se apresentou nesse teatro, sabe que sua acústica demanda uma técnica vocal com os resultados que os cantores de ópera conseguem, quando ali se apresentam. A preparação vocal de Célio Rentroya e Babaya deveria ter trabalhado esse tipo de particularidade com o elenco do espetáculo. Uma grande parte de toda a história da peça simplesmente não foi ouvida por quem estava da metade para o final da plateia. O texto de Augusto Boal é muito profundo. Porém, perdeu sua força a partir do momento em que o público não conseguia escutá-lo.

     Se o elenco não dispõe de técnica vocal para enfrentar uma plateia com as dimensões e características acústicas do Theatro Guarany - até mesmo porque nenhum ator é obrigado a ter formação neste tipo de técnica - cabe ao grupo optar pela utilização de todo o arsenal tecnológico de que dispomos nos dias de hoje. Não podemos negar a tecnologia em pleno século XXI. Seria muita burrice alguém referir que os atores não podem usar microfones de lapela nos dias de hoje. A tecnologia surgiu para nos facilitar certas coisas e, nesse caso, até mesmo para auxiliar que o texto dos espetáculos possa ser ouvido por todos os espectadores nos teatros. Um ator não é melhor que outro apenas pelo fato de não usar microfones ao se apresentar. Nem tampouco um ator é mais competente ou talentoso porque dispõe de um aparelho vocal que o permite ser ouvido em quaisquer espaços. Isso apenas significa que ou ele teve uma ótima formação técnico-vocal ou que é um favorecido anatomo e fisiologicamente falando. O elenco de Murro em Ponta de Faca deveria ter utilizado microfones durante a apresentação para que o público ali presente pudesse, ao menos, ter ouvido a história.

     Falando em Augusto Boal, em um certo momento do espetáculo, há uma quebra na história para os atores proporem um diálogo mais próximo com os espectadores e ilustrarem a percepção de um distanciamento entre atores e personagens. Entretanto, dada a opção de técnica de atuação do elenco ser tão arraigada nos referenciais televisivos, esse momento perdeu a sua força. Talvez, a opção de estilo de atuação do elenco funcione melhor em teatros mais intimistas, onde o público possa enxergá-los mais de perto e observar as nuances de suas expressões. Mesmo assim, o forte diálogo estilístico com a linguagem televisiva fazia com que o universo interior das personagens perdesse a sua força, sobretudo em um teatro do tipo italiano e com as dimensões operísticas do Guarany.

     Outro aspecto que gostaria de destacar, se refere à maneira como Boal consegue construir um conflito externo às cenas com uma intensidade dramática e tensão muito fortes. Entretanto, toda essa tensão e intensidades não eram vistas em cena. Os atores não conseguiam transparecer em suas atuações que existia um conflito externo ao palco que estava afetando à vida de muitas pessoas, inclusive a de seus personagens. Talvez, esse detalhe tenha passado em branco pela direção, ao deixar os corpos dos seus atores tão relaxados em cena e suas interpretações tão intimistas.

     No que se refere ao elenco, não posso deixar de destacar a atriz Raquel Rizzo pelo seu excesso de over acting. A expressão over acting já carrega em si o conteúdo de exagero e equívoco. Mas, essa atriz exagerou na dose. Em vários momentos tentava chamar a atenção para si, exagerando além da conta nas reações e perdendo o timing. Isso pode até funcionar em programas televisivos de “humor” com gosto duvidoso, mas, no teatro, beira à canastrice e à provocação do riso fácil. Nenhuma das personagens escritas por Boal era rasa. Mas, às vezes, equívocos na construção das personagens ou falta de uma mão firme do diretor para controlar os ímpetos do elenco, acabam transformando algumas personagens em algo muito menor do que o dramaturgo compôs, quando as criou.

     A temática da ditadura militar que o Brasil viveu durante o século XX jamais deve ser esquecida e precisa ser levada aos palcos com maior frequência. Entretanto, qualquer montagem teatral, abordando o assunto que for, jamais deve esquecer de se dispor ao diálogo com a plateia, para que o espetáculo não fique hermético. Além disso, os atores têm a obrigação de saberem adaptar suas técnicas para qualquer espaço onde venham a se apresentar e cabe ao diretor saber chamar a atenção dos atores para esse fato.

     Portanto, apesar do valor histórico da peça Murro em Ponta de Faca, o que vimos não saiu do palco, não chegou no espectador e ficou muito aquém da obra de Augusto Boal. Porém, fica aqui o registro de um bom exemplo de situações técnicas que podem ocorrer quando um espetáculo se apresenta em diferentes tipos de espaços teatrais e que jamais devem ser esquecidas pelos grupos e companhias de teatro ao saírem em turnês com os seus trabalhos.

Vagner Vargas
Ator – DRT: 6606

Crítico de Teatro

2 comentários:

  1. Oi Vagner! Tudo bem? Tu és o mesmo Vagner que eu conheço, né?
    Gostei muito do que escreveste. Gostaria muito de que tu escrevesse sobre um espetáculo meu, quando eu estiver por Pelotas.
    Abração,
    Airton de Oliveira

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  2. Oi Airton

    Sou eu sim. Nos conhecemos há alguns anos.
    Muito obrigado pelas considerações. É sempre bom ouvir um feed back de quem lê o que eu escrevo!
    Será um prazer escrever sobre algum dos teus espetáculos que venham a Pelotas ou quando eu estiver em Porto Alegre.
    Abração

    Vagner Vargas

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