segunda-feira, 13 de maio de 2013

Alteridade Confrontada na Comédia dos Erros de Shakespeare


           O público formava uma grande fila que se estendia até à rua. Muitas pessoas aguardavam antes do horário para assistirem ao espetáculo “A Comédia dos Erros”, clássico de Wiliam Shakespeare, apresentado pela Cia Stravaganza, de Porto Alegre/RS, no dia 28 de Agosto de 2011, no Centro de Treinamento do Grupo Tholl.

          Com primorosa direção da experiente Adriane Mottola, o espetáculo propunha uma disposição do espaço cênico diferenciada do tradicional palco italiano. Logo que os espectadores entravam, eram confrontados com um mercado público, com signos que remetiam aos comércios populares do oriente médio. Os personagens da história recebiam o público, oferecendo-lhes alguns produtos que estavam à venda durante a peça.

          O cenário é disposto de maneira horizontal, espalhado entre os assentos da plateia, conferindo um aspecto de rua, já inserindo os espectadores dentro da atmosfera dessa feira pública onde as histórias se desenrolam, muitas identidades surgem, desaparecem e se transformam ao longo de, aproximadamente, 100 minutos. Aliás, identidade é justamente o mote inicial do discurso que principia o espetáculo.

          As luzes se apagam e surge uma Drag Queen, a famosa celebridade de showbiz do entretenimento noturno gaúcho Laurita Leão, criada pelo excelente ator Lauro Ramalho. Laurita começa o espetáculo falando sobre identidades de pessoas, coisas, lugares e refletindo sobre a noção epistemológica e conceitual que essa temática aborda. A personagem nos fala sobre a reconciliação com a imagem que criamos de nós mesmos, no entanto essa identificação permanece inquietante e continuamente desconhecida e em criação, enquanto o tempo passa. Durante todo esse discurso, a Drag Queenvai se “desmontando” aos olhos dos espectadores, deixando desaparecer a imagem de superficialidade burlesca, enquanto surge a personalidade do ator Lauro Ramalho que se reconstroi na caracterização de um velho comerciante, seu novo personagem, ou sua nova identidade naquela história.

          O desprendimento que esse ator teve, para revelar sua fragilidade por de trás do escudo que a primeira figura lhe imprime, enquanto se expõe como ator, para logo após ilustrar a construção de seu novo personagem, demonstra um exercício de humildade, coragem e entrega verdadeira que apenas os grandes artistas conseguem comungar com o seu público. Esse é apenas o assunto inicial que a adaptação da Cia porto-alegrense usou para situar o público na temática relacionada ao texto escrito originalmente no século XVII. Apesar de ser um texto tão antigo, seus questionamentos ultrapassaram todos esses séculos e essa proposta teatral adaptada para um outro contexto conseguiu aproximar ainda mais os ali presentes, da história que lhes estava sendo contada.

          Não posso deixar de tecer elogios às concepções de figurinos, cenário, elementos de cena, iluminação e sonoplastia, pois todos esses aspectos nos saltavam os olhos para a percepção do requinte de uma proposta de encenação muito bem elaborada. Não apenas os detalhes dos figurinos, mas também a própria paleta de cores utilizada permitia imprimir uma identidade visual não apenas a cada personagem, mas ao espetáculo como um todo. Nenhum elemento que surgiu em cena estava ali sem um propósito contextualizado na encenação. Não foram necessários elementos alegóricos, nem grandes ornamentações que exibem apenas uma ornamentação cênica vazia. Muito pelo contrário, o trabalho da equipe técnica desse espetáculo é preciso, adequado, pertinente e funcional.

          O texto conta uma história de uma troca de bebês que acabam se cruzando no futuro, tendo suas identidades confundidas ao longo de uma série de situações que vão construindo o enredo divertido da história Shakespeariana. Embora o texto seja excelente, nesse caso, a sua transposição para a linguagem teatral só obteve o devido êxito, pois o elenco composto por Carlos Alexandre, Gustavo Curti, Sofia Salvatori, Fernando Kike Barbosa, Lauro Ramalho, Janaína Pelizzon, Adelino Costa, Rodrigo Melo, Anita Coronel, Rafael Guerra e Vanise Carneiro estava extremamente afinado. Os atores souberam dialogar com a plateia, mantendo o ritmo e o envolvimento com os espectadores durante toda a peça.

          A meu ver, tivemos o deleite de assistir a dois espetáculos. O primeiro contendo o discurso filosófico e antropológico conduzido pelo grande ator Lauro Ramalho. O segundo continha todas as peripécias da história criada pelo dramaturgo inglês e desempenhada de maneira competente pelo elenco da Cia Rústica. Nos últimos anos, tenho observado que sempre que um texto de Shakespeare vem a Pelotas, o teatro não apenas lota, como o público gosta muito do que lhe é apresentado.

          Considero que Shakespeare sempre é uma boa pedida. Porém, os textos desse autor costumam ser muito temidos, pois não é qualquer elenco, nem diretor que consegue segurar a profundidade de seus diálogos, críticas e abordagens temáticas. Nesse sentido, finalizo re-enfatizando a grande ideia desse grupo ao aliar o mote da “Comédia dos Erros”, ao discurso sobre identidade enquanto observamos a transformação de um artista em cena, nos levando a refletir sobre as muitas identidades que vamos construindo e assumindo ao longo de nossas vidas.


MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico Teatral.


Texto publicado em 08/09/2011

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