Os nomes
Valter Sobreiro Jr. e Teatro Escola de Pelotas falam por si só e já trazem uma
qualidade intrínseca agregada a quaisquer trabalhos que venham a desempenhar.
No dia 19 de dezembro de 2012, não foi diferente. Quando começou a apresentação do espetáculo Entremez da Rainha Dona
Maria, a Louca, e seu Fiel Criado Belisário, na Bibliotheca Pública Pelotense, a plateia presente já sabia que se
tratava de um excelente espetáculo.
O texto da peça,
escrita e dirigida por Valter Sobreiro Jr., conta uma história que se passa em
um lixão isolado, à beira de um rio poluído, onde uma mulher, afetada pela
loucura, vive a fantasia de ser D. Maria I, rainha de Portugal. A personagem
vive em seu castelo de faz de conta, com Belisário, um adolescente mantido aos
seus serviços como se vivessem no século XVIII. O mundo fantasioso de D. Maria
I é confrontado pela chegada de um bebê ao lixão e, logo em seguida, quando a
mãe dele, uma jovem prostituta vem buscá-lo. A partir daí, se desenrola a trama
de acontecimentos do espetáculo.
O texto
mantém a qualidade e identidade dramatúrgica que Valter costuma imprimir em
seus trabalhos. Os diálogos muito bem construídos, alinhavam uma trama coesa,
onde nada está sobrando ou fora de lugar. A maneira inteligente como Valter
organiza a história, leva os espectadores a refletir sobre a solidão, depressão
e a necessidade que algumas pessoas têm em criar desculpas para não encararem a
dura realidade de suas vidas. Claro que, no caso da protagonista, esses limites
são ultrapassados, confundindo-se entre loucura e sanidade, crueldade e doçura.
Valter
Sobreiro Jr. Também assina a cenografia, iluminação e direção do espetáculo. A
cenografia simples, porém extremamente funcional e de acordo com a proposta,
consegue colaborar para a construção do ambiente desfrutado por D. Maria I e
Belisário. De início, ficamos com a impressão de que a peça se passa em algum
lugar devastado, lembrando as ambientações backetinianas, onde transitam
personagens destruídos pela sua dura condição, sem esperanças para grandes
mudanças em suas vidas.
A
iluminação compõe uma estrutura dramatúrgica em consonância com os diversos
momentos que cada personagem vai enfrentando. Apesar da pouca disponibilidade
técnica para iluminação cênica no local, Valter soube potencializar os recursos
disponíveis, sem afetar o desenvolvimento das cenas. Além disso, tanto a
operação de luz, quanto a paleta de cores utilizadas colaborava para a construção
dos momentos da história que transitavam entre os campos onírico, real, insano,
assim como também ajudavam na transição das cenas.
A maneira escolhida para realizar as trocas de
cenas, assim como a contra regragem encenada por Juliano Gass e Ana Laura Paiva
foi muito adequada à proposta. Ambos os atores entravam e saíam de cena,
preenchendo e potencializando alguns momentos da história. Além disso, a trilha
sonora composta por Leonardo Oxley além de bela, envolvia os espectadores no
universo e nos conflitos de cada personagem de maneira muito delicada.
Um capítulo
à parte, se refere aos figurinos concebidos por Barthira Franco. Essa peça pode
ser um típico exemplo para as pessoas que desejam fazer figurinos para teatro,
sobre como adaptar materiais que permitam intensificar a caracterização das
personagens de acordo com a proposta do espetáculo. Os figurinos de D. Maria I
e Belisário refletem o interior dessas pessoas degradadas por uma vida que
abandonou o plano real e criou o seu próprio mundo imaginário.
As
texturas, cores e desenhos das vestimentas construíam um ótimo exemplo de como
se conceber o visagismo para um espetáculo de teatro. Além disso, os figurinos
dos outros personagens contrapondo a realidade da jovem prostituta com a ficção
da contra-regragem, traziam os contra pontos perfeitos para fecharem com a
concepção de encenação adotada. Este espetáculo é apenas mais um exemplo da
qualidade do trabalho de Barthira Franco como figurinista. Isso, sem falar no
seu trabalho como atriz, encenadora, maquiadora, cenógrafa e, atualmente, como
diretora do Teatro Escola de Pelotas.
O trabalho
do ator Sérgio Peres, que deu vida à personagem D. Maria I, merece todos os
elogios. A opção de uma atuação não realista e estilizada pode ser a premissa
para o desabamento de um espetáculo, quando feita por um ator despreparado. O
que não é o caso do experiente e talentoso Sérgio Peres, que assumiu a difícil
tarefa de manter essa opção estilística durante todo o espetáculo. Já nas
primeiras frases da peça, nós esquecemos completamente de que se trata de um
ator interpretando um personagem feminino. Sérgio conseguiu fugir de todas as
armadilhas simplistas da estereotipação de uma personagem mulher, interpretada
por um homem e ele ainda vai além, conseguindo imprimir todas as nuances e
facetas que a personagem necessita à medida que vai revelando sua história à
plateia.
Visivelmente,
observamos o quanto a construção dessa personagem exige não apenas da
sensibilidade de Sérgio Peres, mas também do seu físico. Inclusive, o trabalho
corporal e estética adotadas por ele para construir tal personagem, me
lembraram as referências trazidas no filme Stage
Beauty (2004), quando falam sobre o fato dos atores até o século XVII
interpretarem personagens femininas e as suas “Five Positions of Feminine
Subjugation”. Sérgio, com toda a sua experiência nos palcos, consegue envolver
os espectadores nos dramas, traumas e na loucura da sua personagem na medida
certa.
O ator Bernardo Pawlak, que
interpreta o jovem Belisário, costura a história fornecendo características de
doçura, ingenuidade, leveza e sensibilidade para o seu personagem. Bernardo,
apesar da pouca experiência nos palcos, não deixa nada a desejar frente ao
experiente Sérgio Peres. Muito pelo contrário, Bernardo consegue transitar
pelos momentos em que é “escada” e nos momentos em que seu personagem traz a
cena para si na medida certa.
Já a experiente atriz Roberta
Rangel, quando entra em cena, traz uma personagem que irá desestabilizar as
relações já construídas na história. Roberta consegue imprimir verdade cênica a
sua personagem, sem a necessidade de maiores esforços. Sua personagem, que é
uma jovem prostituta, poderia ser uma fácil armadilha para atrizes
inexperientes, caindo em estereótipos ou puxando para características
televisivas e pouco inteligentes. Porém, Roberta vai mais a fundo,
compreendendo os conflitos de sua personagem e a sua condição naquela história.
Roberta sensibiliza os espectadores no drama de sua personagem de maneira muito
doce e delicada.
O elo de ligação entre o universo
não realista da personagem D. Maria I e a vida cruel e real da prostituta é
costurado pelo personagem Belisário. Entretanto, essa situação não fica apenas
na construção da dramaturgia textual, ela se manifesta na atuação dos atores. Sérgio
Peres atua dentro de uma perspectiva não realista de construção da personagem.
Roberta traz uma personagem realista, na dose certa como o contexto necessita.
Já Bernardo, consegue transitar por essas duas opções estéticas, sem prejudicar
a encenação. Muito pelo contrário, talvez seja esse um dos predicados que
qualificam esse espetáculo, fornecendo uma verossimilhança impressionante a
todas as personagens, dentro de cada um dos seus contextos.
Obviamente que tudo isso só foi
possível, pois toda a equipe fora conduzida pelas mãos do experiente diretor
Valter Sobreiro Jr. que soube potencializar as qualidades de cada um dos seus
atores com a maestria que sempre observamos nos seus espetáculos. Além disso,
também gostaria de destacar a versatilidade da encenação, uma vez que a sua
proposta se adéqua tanto para palcos do tipo italiano, quanto para outros
espaços cênicos. Este fato é muito importante nos dias de hoje, quando, antes
de pensarmos no mercado para os espetáculos de teatro, também precisamos levar
em conta as possíveis adaptações espaciais que venhamos a encontrar pelo
caminho.
Portanto, termino esse texto
recomendando a todos que ainda não foram assistir à Entremez da Rainha Dona Maria, a Louca, e seu Fiel Criado
Belisário, que o façam enquanto estiver em cartaz, pois se
trata de mais um competente exemplo dos grandes trabalhos de Valter Sobreiro
Jr. e do Teatro Escola de Pelotas. Além disso, a população de Pelotas precisa
voltar a valorizar as produções teatrais dos artistas de sua cidade e da qualidade
dos seus espetáculos tão reconhecidos no resto do país.
Vagner Vargas
Ator – DRT: 6606
Crítico de
teatro
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